sexta-feira, 24 de abril de 2009

No Princípio, Agora e Sempre

No Princípio, Agora e Sempre

By Maria Helena Nóvoaon

Existe um livro que é um milagre no campo da comunicação universal: um manuscrito misterioso já traduzido em 1435 línguas e dialetos, lido por centenas de milhões de pessoas há milênios, que inspirou a criação de três grandes religiões, provocou guerras, uniu nações e, ainda hoje, no mercado editorial do mundo, vende mais do que Paulo Coelho.
Mito fundador da maior cultura do planeta, a judaico-cristã, a autoria das cinco primeiras partes deste best-seller, o Pentateuco – a Torah – é atribuída a Moisés.
A palavra que inaugura o Antigo Testamento é Bereshit e ela só aparece neste texto. É um “hapax”, palavra sagrada usada “apenas uma vez”. Bereshit significa “no princípio”.
As palavras “princípio”, “principal” e até “príncipe”, têm uma raiz comum e remetem ao primeiro momento ou à causa primeira. Embutido em Bereshit, a primeira palavra, já aparece o mistério do número 1.
A tentativa de entender o Um endoidou muitas cabeças confiáveis: o Um é uma abstração, impossibilitada de se manifestar, a manifestação exige pelo menos a bi-dimensionalidade, por isso o Um é sempre atribuído ao divino, não ao humano. E, como o Um é único, o dois não é a sua soma, é a sua metade, o três a sua terça parte e todos os números são frações originadas do Um imaginário – partes do Todo.
Qualquer ordem iniciática tem como finalidade levar o homem fracionado de volta à sua origem divina: emanado do Um, ele deverá um dia voltar ao Um. Este processo de individuação, de reconstrução do indiviso – o ser único, não dividido – aproxima o homem cada vez mais da sua essência, a verdadeira natureza do seu ser. Para isto ele nasce.
Qualquer tentativa de deduzir o ser através de ações inerentes ao próprio existir pode até gerar boas “sacadas” literárias mas não diz nada. Penso, logo existo é afirmação tão inócua quanto como cenouras, logo existo. Já a revelação de Deus a Moisés no alto da montanha até hoje provoca assombro porque não veio acompanhada de nenhum atributo: Eu Sou quem Sou. Ponto final. E a palavra terrível da única revelação que Deus fez de Si mesmo não é o “eu”, é o “sou”. O Um não tem “ego” nem “persona” – nós, coitadinhos, é que temos – o Um só tem a Si mesmo. O Um é.
Estamos todos muito longe de ser Um. Somos frações ambulantes que se agrupam em torno de algumas características que imaginamos importantes e acreditamos que nos descrevem. Assim, formamos nosso grupo religioso, político ou afetivo, nos organizamos em condomínios, corporações de ofício ou nações e até nos propomos a fazer um ou outro sacrifício pessoal para a sobrevivência do nosso grupo ou da nossa ideologia. E cada vez mais alimentamos este grande monstro chamado “coletivo”. O coletivo nos convida a fazer parte dele com aquilo que só podemos reunir e coerir quando o chamamos de “eu” – o resto está disperso. E sabemos que o “eu” não é o Um.
Ninguém é negro, gay, muçulmano ou diabético. Enquanto acreditarmos numa fraternidade de partes e não de totalidades, seremos “estrangeiros” sobre a terra e dentro de nós mesmos, porque o nosso igual não existe.
O processo iniciático, ao contrário, sugere a libertação do coletivo anônimo e amorfo: viver no mundo sem ser por ele submetido, estar ao mesmo tempo nele e fora dele, dissolvendo os “egos” e as “máscaras” em que o Um se dividiu. Quanto mais o homem se divide, mais se torna inimigo dos outros homens – o que todos compartilhamos é a Unidade inaugural. E quando se chega ao Si mesmo, o resto não é o resto porque não há mais resto.
Cumprimos a jornada circular e voltamos a onde sempre estivemos. Bereshit.

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