Linguagem e poesia vicentinas
As personagens de Gil Vicente falam um português variadíssimo (vulgar, médio, elegante ou pseudo-elegante, erudito ou pseudo-erudito, com muitos arcaísmos, que eram correntes na linguagem popular); falam também, com bastante freqüência, o espanhol (que era então uma língua internacional, como foi o italiano e depois o francês e o inglês) [13]; falam ainda, mais ocasionalmente, o saiaguês (dialeto rústico) e um latim de uso eclesiástico ou jurídico, muito estropiado e humorístico. É admirável como o poeta, em versos — belos versos cheios de ritmo e naturalidade —, consegue captar uma imensa variedade de registros de linguagem (linguagem rústica, linguagem nobre, linguagem afetada, linguagem semiculta, etc.), fazendo que cada personagem utilize as formas lingüísticas próprias de seu meio social. É essa adesão à linguagem falada em sua enorme diversidade que faz do teatro vicentino, além de um monumento de arte, também um documento lingüístico — um repositório de falas portuguesas do início do século XVI.
Todo o teatro de Gil Vicente é composto em versos rimados e revela impressionante virtuosismo na utilização dos redondilhos, [14] os mais freqüentes, e às vezes também dos versos mais longos, ditos de arte maior [15]. Na época, um outro tipo de verso se impunha como novidade — um verso que, oriundo do Renascimento italiano, se tornaria característico da poesia classicizante: o decassílabo então chamado medida nova (dez sílabas métricas com acentos predominantes na sexta e décima ou na quarta, oitava e décima). Gil Vicente jamais aderiu ao estilo renascentista e manteve-se fiel à medida velha — como eram chamados os tradicionais redondilhos. Nisto também ele reagiu contra as transformações em curso no seu tempo.
Como todo grande poeta dramático, Gil Vicente é também um notável poeta lírico [16], “um dos mais altos expoentes nacionais do gênero”, segundo João de Almeida Lucas [17]. Podem-se encontrar na obra vicentina exemplos das principais formas do lirismo tradicional português, ou seja, formas que a poesia lírica portuguesa conheceu antes da renovação iniciada por Sá de Miranda.
Notas:
[1] Gil Vicente, Trilogia delle Barche, tradução de Gianfranco Contini. Torino: Einaudi 1992, p. 81.
[2] Hans Sachs (1494-1576), sapateiro e poeta alemão, é um comediógrafo consagrado não apenas nas histórias da literatura, mas também, como personagem teatral, numa importante obra musical do século XIX: a ópera Os Mestres Cantores de Nurenberg, de Richard Wagner.
[3] O. M. Carpeaux, História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro 1959, vol. I pp. 588 e 585.
[4] Alcoviteira: caftina. Regateira: vendedora ambulante, geralmente de peixes ou hortaliças. Ratinho: empregado da lavoura. Almocreve: condutor de animal de carga, carregador.
[5] L. S. Picchio, História do Teatro Português. Lisboa: Portugália 1969, p. 11.
[6] Os estudantes devem ter presente que aqui a palavra dramático é quase sinônima de teatral. Poeta dramático é aquele que escreve drama, no sentido genérico, ou seja, poesia para ser dita no palco por atores que representam as personagens. Portanto, a comédia — gênero central em Gil Vicente — é uma subdivisão do gênero dramático.
[7] A. J. Saraiva, “Prefácio”, Teatro de Gil Vicente. Lisboa: Portugália 19684, p. 9.
[8] Certamente essa primeira edição já foi objeto de alguma censura. A segunda edição, de 1586, foi de tal forma vitimada pelos censores que as mais de quarenta peças do autor estão nela reduzidas a apenas trinta e cinco, todas mutiladas. Depois, por dois séculos e meio, a obra do poeta não conheceu nova impressão.
[9] A. J. Saraiva, op. cit., pp. 14-15.
[10] A. J. Saraiva, op. cit., pp. 16-17, e “Gil Vicente e Bertold Brecht — O papel da ficção na descoberta da realidade”, Para a História da Cultura em Portugal. Lisboa: Europa-América 1967, pp. 307-323.
[11] A. M. Janeiro, O Teatro de Gil Vicente e o Teatro Clássico Japonês. Lisboa: Portugália 1967.
[12] O. M. Carpeaux, op. cit., p. 588. —
Nenhum comentário:
Postar um comentário